quinta-feira, 24 de maio de 2007

Capítulo 7 - Alto do Cruzeiro

Então como se ainda flutuasse na água do mar, Cícero finalmente abriu os olhos. A visão embaçada e um pouco dolorida, por causa da forte luz, o atordoou. Apertou os olhos com as costas das mãos, e depois coçou o rosto. Nesse momento o espanto foi tamanho, suas mãos sentiram pelos por toda sua face, grandes, mas não como os fios de seu cabelo, que pelo que seus dedos sentiram, haviam crescido quase dois palmos
Cícero pulou da cama, e só então, depois de uma tontura e dor aguda nas têmporas percebeu, seu quarto estava com as paredes quebradas e sem o teto de palha, que agora estava em parte pelo chão de toda a casa. Saiu de abrupto do quarto e foi para a o outro cômodo da casa, que servia de sala e cozinha. Servira no passado ao menos, agora estava na mesma situação do quarto. Saiu por onde um dia foi a porta, e foi ai que viu a perdição. No lugar das árvores secas, solo amarelo, cerca de balaustre com um boi magro amarrado, havia apenas areia, onde a vista alcançasse, areia, em dunas da altura do céu, só areia. E onde antes havia uma cerca com um boi amarrado, só uma tora em pé, uma corda velha em volta da madeira mais velha ainda, em uma de suas extremidades, e na outra o esqueleto semi-coberto do que um dia foi seu boi ossento.
Cícero não entendia nada, lembrava-se do mar, lembrava-se da mãe D’Água, e foi então que reparou, no volume no bolso de usa calça. Era o espelho.
Cícero o retirou do bolso, e com medo, olhou sua própria figura. Era inusitado, lisérgico. Quando fumara do “argrilo” na noite anterior, era um menino-moço que não contava mais do que dezesseis aniversários de Nosso Senhor. Agora seguramente era um homem, com mais de duas dúzias de aniversários. Foi no meio do espanto, que Cícero ouviu um assobio fino e descompassado. Procurou, dando a volta na casa, perto de onde havia um poço, e lá estava um homem, que Cícero custou a conhecer a feição. Era O Andarilho. Mas não aquele andarilho maltrapilho, mal-cheiroso, mal feito, meio doente e agachado. Era sim, um homem com a idade aparecendo nas entradas e nos cabelos da fronte, que eram brancos. Um homem com porte, barba feita, olhos claros, cabelos cuidadosamente penteados para trás. Segurava uma tesoura em uma mão, uma toalha na outra, e a sua frente jazia um banco. Recebeu Cícero com um sorriso amistoso, e por fim estendendo um braço na direção do banco, disse com pompa:

_Sente-se meu senhor, não se demore, já passa muito do meio dia e devemos partir!

Cícero estranhou. O Andarilho era tão sertanejo quanto ele. Talvez mais ainda. Com mais sotaque e trejeitos. O andarilho novo o fez lembrar uma vez, um rapaz, filho do Coronel, que fora passar certa feita no mundo velho, e voltou para uma festa do primo do Nosso Senhor, O Batista. O rapaz, como Cícero se lembrava, falava empolado, e andava vestido com tecido fino, e tinha também esse ar de moça da casa da luz.

_Diga-me o que aconteceu comigo?

_Sente-se e tudo será esclarecido, por favor, só darei um jeito em sua aparência meu senhor.

Cícero sentou. O Andarilho então lhe contou como os anos haviam passado, como a terra girou disforme, e finalmente qual o sentido de tudo aquilo:

_Deve ir ter com o Lúcifer, e de sua mão tirar a alma de Maria. Assim está escrito.

Dito isso ele mostrou o resultado de seu trabalho de barbeiro e cabeleireiro, só assim Cícero pode contemplar seu rosto de homem. Tinha o rosto forte, e os olhos cor do mel, mais claros do que se lembrava, e mesmo não tendo visto o sol pelos anos que seu rosto, e o Andarilho contavam, tinha a pele morena.
O Andarilho preparou tudo, um banho, um almoço, as roupas que foram presentes do Capitão. Mesmo naquele cenário desolado, o Andarilho parecia saber bem o que fazer. Partiram então. Cícero tomou a frente mesmo sem saber bem onde ia parar, lembrou-se apenas de cumprir uma promessa que fizera há anos, a Severino, o irmão falecido. Andaram na direção do antigo morro do Cruzeiro, que para sua surpresa, ainda que no meio das dunas, resistia. Lá do alto olhou o que foi sua terra, o que foi Fio D’Água, sentiu uma nostalgia crescente, uma lágrima infantil, e por fim cumpriu seu prometido. Afrouxou o cinto e mijou no pé da cruz.

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