quinta-feira, 24 de maio de 2007

Capítulo 6 - O Fim do Segundo Ato

O garoto descansava embaixo de toda a água do mundo, mas sentia, contudo, a mão da figura feminina de luz a acariciar seus cabelos. Mesmo dormindo com os olhos fechados podia ver, e se via, era por que sabia que deveria ver bem, e foi então que viu o monstro: Tinha o formato de peixe, mas peixe não era, por que só a mão do cão faria tal criatura. A boca era do tamanho de todo um vale, o guincho de boi abafado podia ser ouvido nos sete cantos desse vale de lágrimas. Foi então que Cícero quis acordar, mas ouviu a voz da mulher-anjo, ela clamava por calma, e o corpo de Cícero obedeceu, mesmo com o coração em pânico.
Cícero pode então entender a língua do bicho, e seu mugido era fácil de imitar, por que Cícero também era monstro, e era da mesma pareia que o primeiro, e o nome da família deles era Baleia. Cícero era também Baleia, e sabia como Baleia que a mulher de azul não era nem a mãe do Senhor, nem a mulher-anjo, e como Baleia pronunciou no seu mugido de monstro a saudação a essa outra mãe em formosura. E seu mugido como o da sua irmã Baleia, falava a mesma coisa que as bolhas dos peixes a volta da Mulher-Mãe D’Água, como numa celebração da ressurreição de Nosso Senhor, esse uníssono de todos os monstros das profundezas da água do mundo, de todos os frutos da terra submersa, de todas as Serias-Iaras de espelho na mão, de todos os bichos criados das águas, de todos os filhos de branco de um reino, de um rio, do primeiro mês do ano, jogando as flores na água do mundo, esse coral cantava uma palavra:

_Odoiá!

E foi assim que Cícero conheceu mais do mundo que de si mesmo. Então teve que abrir os olhos, para poder contemplar a figura da Rainha. Rainha do Mar, pois era assim que a água toda do mundo a chamava, e não havia só um mar, havia sete, mas isso ele só soube por que um dia foi Baleia. E a figura da Rainha era mais linda agora que ele sabia. Porque a mãe do Senhor era bonita mais era de barro, e a mulher-anjo em toda a sua formosura, não tinha mais o brilho que tinha quando era só anjo, por que viro mulher, mas a Rainha, essa era Santa D’Água, e era mãe também, e era mulher, e era rainha, era três e era uma. Tinha a pele escura, mas não queimada de sol, como a pele dos sertanejos, era escura como a pele dos filhos da terra mais antiga. A roupa era alva, clara como as nuvens do céu, era véu de noiva, ele soube. Nas mãos havia um espelho, por que era vaidosa, por isso Cícero soube que deveria amá-la. Tudo em seus adornos era de prata e pérola, seu elmo, seu espelho e tudo mais.
Cícero que agora amava a Mãe D’Água, podia ver a dança dos peixes, dos cavalinhos que sabiam nadar, e em volta dela brincavam e corriam como se tivessem num pasto verde. Foi assim que ela o pegou pela mão e o levou até o mais fundo que o fundo do mar, de toda a água do mundo, e lá nas profundezas, uma monstro grande, que era um baú, e Cícero sabia era uma ostra, abriu-se toda para a mulher de prata e branco. Dentro, feito da carne do monstro, havia uma pérola, grande como a lua, calculou Cícero na sua ingenuidade, pois a lua era bem menor na verdade. A mãe pegou a bola cintilante, e mostrou a Cícero o interior do mundo, no interior da pérola, e foi então que o menino-moço-santo teve medo, pois soube que as ladainhas da mãe velha-cumadre estavam certas.
O Cão era figura de homem, se disfarçava de anjo que foi um dia, cheirava fedido, era da cor da pimenta e tinha os cornos do touro boi-zebú, que Cícero sempre soube, tinha parte com o cão. O Cão segurava na mão vermelha o espírito de uma moça. Cícero olhou mais de perto, e foi então que chorou, pois o espírito que o cão segurava era o da mulher-anjo do Capitão. Cícero fugiu da imagem, a Mãe D’Água não o reprimiu, mas olhou com lágrimas também para ele, e disse, num canto triste, por fim:

“A mãe do Senhor é irmãzinha,
Minha maninha ela é,
E é irmã de Maria,
Que é anjo e é mulher

Eu que sou Rainha D’Água,
Dela não posso sair,
Mas mandei chamar um santo,
Para cá ver e ouvir,

Ouvir esse canto triste,
Que conta o que aconteceu,
A história de Maria,
Mulher-anjo que morreu,

E na guarda do Capitão,
Roda como Rainha,
Para que não ache ela, o Cão,
Que dela a alma já tinha,

Então veio a mãe do Senhor
Ter com o cangaceiro uma prosa,
Contou que a nossa irmã,
Era pedra preciosa,

E que ele deveria guardá-la,
Como o canteiro guarda a rosa,
Até que um santo salvasse
A alma da mão leprosa

Do Cão inimigo do Senhor,
Que um dia foi anjo como ela,
E agora é só o Cão
Diabo de língua amarela”

Cícero chorou de novo no fim do canto, e entendeu por fim por que a beleza da mulher-anjo era tão triste. A mãe D’Água pegou o espelho, e estendeu para Cícero, que após relutar aceitou. Ela então, estendeu de novo a mão, acariciou o rosto do menino, e por fim tocou de novo sua testa. Ele então viu que descansara por demais, e que sua criação estava se perdendo, decidiu por fim acordar. Foi o fim do segundo ato.

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